Para Alice
 



Contos

Para Alice

Rosane Bernardi


Vamos lá! Eu sei que é difícil para você sair de casa. Ultrapassar a porta é um desafio que não quer mais. O seu tempo de enfrentar e me proteger da " fúria do mundo", como dito pelo filósofo, já passou. Ficou a memória nebulosa de algo que pode ser muito ameaçador. Embora eu não seja imune à agressividade do mundo, agora posso protegê-la na medida da previsibilidade que um passeio ao shopping oferece.

Abro a porta de casa e caminhamos lado a lado, devagar, de braços dados. Quero acreditar que o seu olhar expresse, além de insegurança, curiosidade. Neste momento da sua vida muitas coisas esquecidas tornam-se novidade. Vivencias de afeto não ficam de fora e podem ser boas ou nem tanto. Para a sua memória já muito fragmentada, a minha presença não garante segurança o tempo todo.

Convencer você a entrar no carro é um desafio! Posiciono você de costas para o banco do carona e protejo a sua cabeça com a minha mão, enquanto a Dieni, ajoelhada no banco do motorista, segura firme a sua cintura. Então, num esforço coordenado, conseguimos fazer você se sentar no banco. Um giro de 90° permite que você fique de frente para o para-brisa, recolho as suas pernas e as posiciono corretamente. Agora o cinto de segurança e pronto! Lá vamos nós para o shopping! A Dieni no banco traseiro com as mãos carinhosamente nos seus ombros.

Sei o quanto você gosta da Dieni. Sorri quando ela chega. Não reclama quando ela ajuda na sua higiene, penteia os seus cabelos ou lhe dá as medicações. Confesso que, depois de tantas decepções, não fiquei muito segura quando a escolhi para me ajudar a cuidar de você. Mas lá se vão três anos. Nesse tempo ela se revelou uma jovem de alma límpida. Uma guerreira como nós, digna de compartilhar a nossa bolha de afeto.

Chegamos! Agora o desafio é conseguir que você saia do carro. Isto demanda gemidos e xingamentos, mas finalmente estamos dentro do shopping. De novo, caminhamos de braços dados, eu à sua esquerda e a Dieni à sua direita, lentamente, no seu ritmo. Vitrines não chamam muito a sua atenção. Pessoas, sim. Algumas despertam o seu interesse em particular, provocando sorrisos ou expressão de preocupação. É preciso ter cuidado para evitar desconforto e sofrimento. Algumas crianças se aproximam. Um bebê é conduzido pela mãe em um carrinho. Antecipo a sua reação. Você sorri e inicia um discurso ininteligível recheado de neologismos que só eu e a Dieni sabemos expressarem alegria e carinho. Você tenta pegar o bebê no colo. A mãe fica naturalmente ansiosa. É desconcertante ter que afastar você de uma vivência que a mobiliza tão profundamente.

Preciso presentear uma criança e entramos em uma loja de brinquedos. Com certeza essa experiencia não fez parte da sua infância difícil, onde teve que lidar com o trabalho precoce e a brutalidade daqueles tempos. Bonecas de todos os tipos preenchem as prateleiras de um amplo corredor. Você parece se encantar com uma delas. Não é a maior, mais bonita ou colorida. É de tamanho médio, os cabelos claros são presos no topo da cabeça com um laço, olhos azuis fixos, assim como o sorriso. Braços e pernas assumem uma posição semifletida como a dos bebês pequenos e está vestida com um macacão azul. Coloco a boneca nos seus braços. Você é pura felicidade. Não grita e pula como uma menina que ganha a boneca sonhada. Mas a beija e a acalenta no seu peito, envolvendo-a numa carinhosa conversa de tatibitate. Uma conversa de menina mãe, menina avó. A fúria do mundo então desaparece nesse momento delicado que expõe a sua fragilidade e revela, ao mesmo tempo, a força do seu amor. Compro a boneca para você.

Ao voltarmos para casa, abraçada a sua boneca, você, feliz, não oferece resistência para entrar no carro. É que já tendo cuidado dos filhos e de tanta gente, a menina em você, enfim, poderá brincar - de mãe!


Rosane Bossle Bernardi é natural de Caxias do Sul, médica com especialização em neurologia e neuropediatria, pós-graduação em Farmacologia, e professora aposentada de Farmacologia pela UFCSPA. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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